quinta-feira, 20 de abril de 2017

Tirante as belas senhoras e as belas colinas

Quando, vindo do Porto, aqui cheguei para estudar Direito no Campo de Santana, em 53, a cidade tinha pouco mais de um quilómetro, era quase uma aldeia. Andávamos habitualmente a pé, e sempre à roda do Rossio, em territórios belarminianos. A Estrela, o Parque Eduardo VII eram sítios já fora de portas. Aluguei um quarto na Avenida da Liberdade, mesmo em frente aos cisnes e aos ratos, ao lado das velhas senhoras da Buchholz, do Rilke e do Beguin, e da pastelaria Bijou que o O’Neill haveria de imortalizar.

Comia no antigo Tivoli, uma pensão familiar, não longe da mesa da Beatriz Costa. Estudava numa cave, entre bilhares, ao lado do Dona Maria e do café Gelo. Via ‘westerns’ no Coliseu, e fitas finas na geral do outro Tivoli, a 4 escudos o bilhete. Ceias, quando as havia, eram no velho Gambrinus. De raro em raro, viam-se filmes clássicos e pintores modernistas no Palácio Foz e novos pintores no Chiado. A faculdade era furiosamente cinéfila, por via dos católicos progressistas, os CCCs Bénard, Bragança, Tamen. Ao São Jorge e ao Condes ia-se nos dias de estreia, para namorar ou cobiçar mulheres inatingíveis. Uma em especial perturbava um amigo filósofo, Nuno Basto, e que nos parecia o próprio pecado. Anos mais tarde, já menos fatal, levaram-me a casa dela, a acompanhar um escritor maldito francês: era a Natália Correia. Os anos 50 eram os anos Cesariny. Em casa dos Portas, o Carlos, agrónomo, dizia-me os poemas dele de cor. Tirante as belas senhoras e as belas colinas, o Cesariny era a única coisa lisboeta digna de relevo. Em tudo o mais, a capital salazarista parecia-me mais retraída do que o Porto, mais longe de Europa. [...] Cineastas daqui, não conhecia nenhum. No Porto havia o Oliveira, a Agustina, o Andersen, o Távora, o Resende, o António Pedro do Teatro Experimental... o umbigo do mundo. Os meus heróis eram do Norte.
Paulo Rocha, início de um texto de homenagem a Fernando Lopes.

Sem comentários:

Enviar um comentário