quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Iminências

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Existem movimentos aos quais resistimos violentamente mas cuja marca é tão poderosa que nos envolvem bruscamente em situações que não nos atraem. Cedemos contra a nossa vontade. Cedemos como um dique cede. São os mais velhos astros que nos atraem sempre na sua órbita apaixonada. Estes astros são os nossos palácios detestáveis.
Os Romanos chamavam a estes astros sidera. Opunham-nos às estrelas (stellae) como grupos de stellae fazendo imagem entre eles, formando "constelações", uma série de sinais que se seguem, que ocorrem, depois retiram-se do fundo nocturno durante o Inverno: um rinoceronte, um caçador, um bisonte, as plêiades. Estes quatro sidera eram os astros que culminavam no fim do Inverno e que anunciavam no fundo da abóbada celeste a iminência da Primavera, o regresso dos pequenos rebentos e das cores, o renascimento do Primus tempus, a iminência da caça logo que os partos vivíparos estavam terminados.
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Estes astros, considerando-os no nosso nascimento, sideram o tempo dos homens e prescrevem as alegrias, os partos, os sacrifícios das primícias e dos primogénitos, as colheitas, as predações renovadas, os ritos garantindo o regresso anual (a sobrevivência anual) de todas as coisas.
Estes astros sideram os animais, sideram a cobrição, sideram o caminho do sol, sideram as chuvas, sideram os rebentos, sideram as flores, sideram os frutos e sideram-nos.
Pascal Quignard, Vida Secreta.

Os olhos das mulheres e dos homens

Os olhos das mulheres e dos homens estão ainda fechados nas primeiras horas do dia de beatitudes sombrias que não confessariam a ninguém.
Pascal Quignard, Vida Secreta.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Caligrafia vs Afectação

Maybe not the nicest thing to say; but listening to some modern interpreters of Beethoven piano sonatas the other day, I was struck by how many seem to feel that they have to add tempo changes and quirky rubato in order to sound 'individual'. A bit like dogs marking lampposts?
Steven Isserlis, no Twitter.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Música clássica

domingo, 25 de fevereiro de 2018

A pequena viagem

O autocarro ia sobreaquecido. Sentia que se formavam na minha testa gotas de suor e tinha o peito apertado. A certa altura voltei-me e vi que os passageiros iam a dormir, todos sem excepção. Os corpos torcidos debruçavam-se ou pendiam dos assentos. A um caía a cabeça para a frente, a outro pendia para o lado ou ia atirada para trás. Muitos emitiam um leve estertor. Apenas o motorista ia a olhar para diante, para a fita da estrada reluzente da chuva.
Sebald, Austerlitz.

Domingo no mundo (48)

Há algo na linguagem que esganiça - e que mostram bem o canto dos pássaros quando o Sol se ergue no céu e o ilumina. Este fenómeno está de tal modo ligado à diferenciação em todos os sentidos, fotofónico da vida no volume do espaço (a invenção imóvel das formas vegetais, a invenção movediça das formas animais, a invenção alucinante das cores, a invenção inaudita dos sons) que a unidade contínua que sela a noite perde-se aí. Que a obscuridade do Universo deseja ser perdida. 
Pascal Quignard, Vida Secreta.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Albert Chevallier Tayler, The Quiet Hour, 1913.

A casa

Creio que era sobretudo a mochila, que mais tarde Austerlitz me contou ter comprado por dez xelins numa loja na Charing Cross Road, de um lote de excedentes militares suecos, pouco antes de iniciar os seus estudos, e à qual se referia como o único bem verdadeiramente de confiança existente na sua vida; e terá sido esta mochila, ao que creio, o que então me deu a bizarra ideia da semelhança entre ele, Austerlitz, e o filósofo falecido de cancro em Cambridge, em 1951. Também Wittgenstein andava sempre com uma mochila, em Puchberg e em Otterthal, bem como quando foi para a Noruega, ou para a Irlanda, ou para o Cazaquistão, ou passar o Natal a casa das irmãs, na Aleegasse. Essa mochila, que Margarete diz numa carta ser-lhe tão querida como o seu próprio irmão, viajava sempre com ele para toda a parte, atravessou mesmo, ao que creio, o Oceano Atlântico a bordo do navio de linha Queen Mary e depois foi de New York para Ithaka.
Sebald, Austerlitz; tradução de Telma Costa.

O nariz frio de Italo Calvino

Dominique Nabokov, Italo Calvino, Nova Iorque, 1983.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Minha senhora

Me lembro dum empregado que tive, chamado Marciano, no tempo que eu tinha um cachorrinho novo que cagava por toda a casa. Então um dia eu cheguei e pedi: “Seu Marciano, será que dava pro senhor limpar o cocô do cachorro?”. Ele falou: “Bosta eu não limpo”. Eu falei: “Por quê? Eu, que sou uma doutora, limpo”. Ele falou: “Bom, é uma questão de gosto, minha senhora”.
Hilda Hilst, Fico Besta Quando Me Entendem.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Electrodomesticidade

A impressão que eu tenho é que as estruturas políticas estão exigindo isso do homem. Que ele seja antes de tudo um técnico.
Hilda Hilst, Fico Besta Quando Me Entendem.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Domingo no mundo (47)

Miguel Ângelo, A Criação de Adão, 1508-12.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Três furos abaixo, digamos, não é um sítio específico

[...] when the rich are poor they are never poor like the poor are poor [...]
Alan Bennett, Keeping On Keeping On.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Engenharia Civil

Minha infraestrutura é completamente amorosa.
Hilda Hilst, Fico Besta Quando Me Entendem.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Abundância

“Por que as pessoas acham que eu escrevo para os eruditos? Eu falo tão claro. Eu falo até sobre a bunda”. E ele me respondia: “Mas tua bunda é terrivelmente intelectual, Hilda”.
Hilda Hilst, Fico Besta Quando Me Entendem.

Le rayon vert

Bernard Axel Bendixen, Retrato da Condessa Schulin, 1839.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Do dia III

Do dia II

Do dia I

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Programa

16 May [2010]. Spend part of the afternoon hiding in the gazebo with a (water) pistol on my knee hoping to surprise the squirrel rifling the (squirrel-proof) bird feeder.
Alan Bennett, Keeping On Keeping On.

PS: estive para linkar, em jeito de graça, a palavra «gazebo» ao vídeo da banda com esse nome a tocar o grande clássico oitentista «I Like Chopin», mas, indo espreitar (já não me lembrava bem da canção, apenas que metia muito azeite), reconsiderei: há limites; a partir de certas quantidades de azeite não se brinca.

a lei do quão

    Deve ocorrer em breve
uma brisa que leve
    um jeito de chuva
à última branca de neve.

    Até lá, observe-se
a mais estrita disciplina.
    A sombra máxima
pode vir da luz mínima.
Paulo Leminski, Toda Poesia.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Domingo no mundo (46)

Florence Fuller, A golden hour, 1905.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Os velhos casais

24 March [2009]. [...] A similar couple in the store are at the greengrocery counter where the husband is undecided, on a cauliflower.
‘What are you waiting for?’ says the wife. ‘Do you want it to sprout?’
John delights, he says, in these ancient couples who have spent a lifetime honing their skills at scoring off one another.
Alan Bennett, Keeping On Keeping On.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

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Dora Maar: Nusch e Paul Éluard, Mougins, 1937.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Escafandrismo

Todo aquele que se pergunta em profundidade é um ser religioso.
Hilda Hilst numa entrevista (in Fico Besta Quando Me Entendem; org. Cristiano Diniz).

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Os diários são para comer

2 September [2008]. [...] I’ll normally have my lunch at one. Today it’s a large granary roll that I slice up thinly for sandwiches, one side of which I spread with butter, the other mayonnaise. Then I put on some cos lettuce and smoked salmon, while in the centre of the plate is some carrot and apple salad left over from last night’s supper. Sometimes I’ll have a glass of water but today not. To finish I have a sliced-up banana topped off with vanilla yogurt and half a spoonful of blackberry jam. All this I put on the French tin tray R. bought earlier this year (when I was ill and having meals in bed) and bring it upstairs to my table, where I listen to BBC7’s This Sceptred Isle, a history of England read by Anna Massey, Peter Jeffrey, Christopher Lee and Paul Eddington. Afterwards I take the tray back downstairs to get my midday pills: two Omega 3 tablets, one selenium and one saw palmetto plus a piece of dark chocolate and a cup of green tea.
Alan Bennett, Keeping On Keeping On.

Uma forma de possessão

Traduzir é um trabalho fascinante. (...) 
É preciso uma imersão. Uma pessoa tem de estar quase possuída por aquelas vozes. Eu andava pela casa a recitar aqueles vozes. É uma forma de possessão. Uma pessoa tem de estar possuída pelo texto original para depois, pouco a pouco, ir construindo o que o texto pode ser noutra língua.
António Sousa Ribeiro, aqui.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Domingo no mundo (45)

Joseph Siffred Duplessis, Madame de Saint-Maurice (Pormenor), 1776.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

The point

28 November [2007]. R. is reading Brideshead Revisited for the first time, my browning-at-the-edges Penguin that must be fifty years old.
‘Tell me,’ he says plaintively, ‘is it meant to be snobbish or am I missing the point?’
Alan Bennet, Keeping On Keeping On.

Virginia lendo

Lady Ottoline Morrell, Junho de 1926.