sábado, 20 de janeiro de 2018

Ser forte

À saída da porta da cozinha, na casa da Matola, a minha mãe plantara uma alameda de piripireiros que cresciam e me chegavam à testa, lindos de frutos o ano inteiro, nos quais eu a minha coragem e capacidade de resistência. Puxava os piripiris, arrancando-os aos ramos, escolhendo os mais vermelhos e inchados, e comia-os crus, mastigando-os, sofrendo o fogo da terra às primeiras tentativas, mas procurando, mais tarde, encontrar padrões de picante consoante a forma, cor ou tamanho das bagas.
Desejava tornar-me forte. Primeiro um piripi sem caretas, depois dois, três, chegando aos quatro, e sem limites, até poder atingir a medalha de ouro nos jogos olímpicos da malagueta, que por acaso se realizavam amiúde, e espontaneamente, entre a miudagem da vizinhança, na unidade F do Bairro Doutor Salazar, Matola Nova.
Quem aguentava mais? Quem aguentava sem engasgamentos e trejeitos faciais? Haveria de vencer os rapazes da vizinhança em todos os aspectis passíveis de avaliação, mas, sobretudo, haveria de ultrapassar-me. Ser forte como o meu pai. Ser forte como o meu pai desejava que fosse. E como os pretos  - que comiam piripiri sem caretas. Ou como a Helen Keller - que não comia piripiris alguns. Por isso, treinava-me duplamente a cada saída pela cozinha: primeiro, a alameda, os piripiris em crescendo degustativo; segundo, as corridas à volta da casa, porque havia que ser resistente, volta a volta, e quando aguentasse seis, sem parar, rápida chegaria às sete, depois às oito, e ao céu do atletismo. Ser forte. Havia que resistir a tudo, não desistindo. Havia que ser como a Helen Keller. Como o meu pai. Como os pretos. A vida não haveria de me apanhar desprevenida. Havia de viver tudo, viver melhor e bem. Não seria uma minhoca, uma alforreca, uma amiba. Não havia de ser um pau-mandado como as outras mulheres. Eu cá não dobraria. Havia de ser como a Helen Keller. Ou o meu pai. Nesta parte já não entravam os pretos.
Lembro-me: era preciso vencer o fogo e a dor.
Isabela Figueiredo, Caderno de Memórias Coloniais.

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