domingo, 5 de maio de 2019

Domingo no mundo (104)

A Lourdes saiu pela primeira vez da Ilha da Madeira com vinte anos. Em Lisboa, frequentou a escola superior de belas artes, que deveria abandonar passados cinco anos após o resultado de uma prova que lhe valeu a irrevogável menção: excluída. Fortemente escrito a giz sobre o óleo, pela mão do mestre que não tolerou a insubmissa lucidez, quando a regra era pintar o modelo-nu-de-cor-de-rosa, tal como se estava a ver, e ela pintou-o verde, pintou-o amarelo, pintou-o roxo, pintou-o como ela o VIA. (E lá porque na repressiva menção se encontra implícito um elemento libertador – segundo a confissão herética – e não um depressivo vale de lágrimas – evaporado pelo fogo, nela -, nada, mesmo nada, pode justificar a existência desses anfíbios diplomados que servilmente e em todas as épocas alimentam sistemas, ignorando as moradas da resistência à alienação. Ou até talvez mesmo ignorem, pura e simplesmente, como se barra o pão com a manteiga.) Mais tarde, a heresia esteve exposta para todos os colegas verem. Dito isto, o que importa é acto. Postura sem inferência, face ao que se vê e ao que não se vê, incessantemente, momento a momento. Daí, a diferença entre o que vem da revolução e o que vai para a evolução. Da revolução: vêm altos e baixos, fins a atingir (mesmo estimáveis), dualismo, dependências, tensões, passados, futuros... Para a evolução: vai, energia profunda, corrente em cascata, movimento contínuo sem ruptura nem limites, fluidez, unidade, desapegamento, presente... Enquanto a primeira condiciona, repito, mesmo com estimáveis razões, e anuncia "outra vida" ou "vida melhor", a segunda é descondicionamento até ao fim e proclama: "morte à morte". Todas as tradições, verdades, sistemas, histórias, ideologias, dogmas, silêncios, tudo, tudo o que está pré-estabelecido, institucionalizado, sistematizado, associado, socializado, etc... tem que forçosamente ser clarificado pelo próprio homem, experimentado directamente à luz do 'seu' presente. Sair até ao fim, debaixo de qualquer espécie de canga, seja ela feita de pau ou de jade. E isto para quê? Para que viver nunca se torne um vício. Mesmo com o seu admirável cérebro, o seu polegar oponível e a sua postura bípede, é no entanto a força da insubmissão que faz a grande diferença entre o humano e o bovino. Ainda por cima é ela que preside a essa metamorfose, com ela, ele constrói-se a si próprio. O inventor dos ready-made disse-nos: "um quadro que não choca não vale a pena". Que choque é este senão o acordar, o despertador do conveniente sono em que todos fomos metidos e ainda nos encontramos? Sono engodado e letárgico que começa exactamente no começo, no primeiro dia, quando o demiurgo fez o céu. Céu da terra ferida por convenientes palavras, gestos e objectos que condicionam e perigosamente levam à temível modorra... Sendo grave, a violência desse choque é o que há de mais pacífico, pois é nele e só ele que conheceremos o nosso verdadeiro estatuto terrestre, consequentemente o caminho que de facto percorremos. Compete-nos alimentá-la com a indispensável e apropriada energia. E isto diz respeito tanto ao que "faz", como ao que "vê". Uns fazem porque vêem, outros porque vêem, fazem. Mas aqui estamos a falar de quem faz, ou melhor, da que 'faz o não fazer', trabalho esse que reduz a distância entre uns e outros, deixada em aberto pela virtude da sua transparente produção.
Manuel Zimbro, aqui.

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